contos, Crônicas do cotidiano delirante, Crônicas do cotidiano familiar, Crônicas vividas

O cãozinho do embaixador

Um dia o embaixador precisou deixar o país. Embora seus predicados fossem úteis em Brasília, a natureza do serviço diplomático exigia sua presença em destinos estratégicos como Tasmânia, Seychelles, Madagascar, Islândia, Terra do Fogo e Honolulu.

Partiu com a mulher e os dois filhos, mas teve de deixar o cão de estimação. Pugs não viajam bem. De modo que Vlad, um espécime da mais alta estirpe, com pedigree, um nome oficial impronunciável e muitas, muitas dobrinhas, ficou conosco.

A herança trouxe grande alegria para a nossa casa. Acredito que Vlad foi, e ainda é, muito feliz aqui. A rotina dele, contudo, mudou. Deixou de ser um cão de apartamento, disciplinado em seus hábitos, como o de sair duas vezes por dia para necessidades nas árvores da calçada, e tornou-se um animal solto, indomável, com circulação e excreções livres no espaço significativamente maior que passou a ocupar: uma casa grande de interior, com quintal, jardim e inúmeros ocupantes, das mais variadas espécies.

Vlad adaptou-se rápido. Revelou uma insuspeita vocação caipira, brejeira mesmo. Desfez-se das joias e até da coleira. Nunca pediu para ser chamado pelo sobrenome de batismo – coisa que nunca fizera, na verdade, como fomos saber do embaixador.

E nós também mudamos nossa relação com cães. Embora circulasse por quase toda a casa, incluindo jardins e quintal, Vlad ocupava, predominantemente, os cômodos internos, o que foi uma novidade positiva para toda a família: ter um cachorro de dentro, que partilhava apenas com humanos e gatos esse privilégio. Naturalmente, nós nos adaptamos a alguns cuidados específicos que tal situação exige, como banhos frequentes – da parte do Vlad, claro.

Todos completamente entrosados em hábitos, necessidades, manias e alegrias, fomos sobressaltados por uma intercorrência prevista, só que mal planejada: o embaixador voltaria ao Brasil. E, como seria de se esperar, nos visitaria. E reencontraria o Vlad.

Foi quando nos ocorreu um injusto desespero. Recebêramos um pugzinho lépido, serelepe, que corria pela casa, subia no sofá, dava pulinhos. Era jovem, enfim. Aos cinco anos, ainda tinha muito da energia juvenil. Anos depois, quando da esperada visita do embaixador, Vlad já era um idoso. Sofria de bronquite asmática, sopro no coração, bico de papagaio, artrite e infecções crônicas nos ouvidos, além de outros probleminhas recorrentes à raça.

Cuidamos bem dele, sempre fizemos tudo que esteve ao nosso alcance. Diante da visita do embaixador, no entanto, pareceu pouco. Não queríamos que o Vlad fosse visto daquele jeito. A ciência veterinária não para de avançar, inclusive em campos que nunca nos ocorreram existir, como o estético, o psicológico, o metafísico, e deveríamos nos valer disso.

Decidimos tentar tudo que jamais havíamos cogitado. Faríamos o possível para que o reencontro do embaixador com seu cão não fosse revestido da melancolia que inevitavelmente cerca os seres no ocaso da vida. Inevitavelmente o escambau! Além dos médicos veterinários de todas as especialidades – até então só havíamos trabalhado com dois – e do tradicional banho no pet shop, Vlad passou a ter: fisioterapeuta, personal trainer, massagista, astrólogo e consultor de investimentos. Esses, fixos. In-house. Além de seções regulares ou pontuais de manicure, pedicure, lipoaspiração, drenagem linfática, massagem modeladora, pilates, ioga, tai chi, muay-tai, acupuntura, crossfit e krav maga.

Em pouco tempo ele recuperou parte do viço da juventude. Andava pela casa de cabeça erguida, o que soa anatomicamente improvável para um pug, e, nos dias mais animados, quase corria. Chegou até a latir. Após algumas semanas dessa rotina rigorosa, mas ainda longe de atingir o auge do vigor físico, planejado para a semana da visita do embaixador, Vlad esmoreceu. Passou a demonstrar sinais de cansaço, desânimo, tristeza e agressividade.

Levamos o resiliente cão para uma consulta de emergência com o psicoterapeuta. O diagnóstico foi rápido e assertivo:

­– Essa rotina tem sido estafante pro Vlad. Os sinais são claros. Ele apresenta sintomas de estresse infantil.

–  Mas ele tem 15 anos!

– Nessa idade, pode ser fatal.

Crônicas vividas, Reflexões

Armadilhas da arte

Uma das armadilhas que encontramos ao conhecer uma obra de arte é associá-la a algo que já conhecemos. É inevitável. É preciso estar muito escaldado ou diante de algo muito, muito distante de nossas referências para não o fazer. Trata-se de uma defesa legítima e natural. Precisamos classificar algo com o qual travamos contato para nos sentirmos seguros, para sabermos como nos comportar diante daquilo. Isso é bom? Isso é ruim? Isso é medíocre? Devo descartar? Devo admirar? Devo me aprofundar? Devo me calar para não falar besteira? E se perguntarem o que penso? E para mim mesmo, o que digo? Calar para os outros é mais fácil que decidir se devemos nos permitir gostar ou se colocamos rápido uma etiqueta e jogamos numa gaveta, sem ocupar muito espaço, enquanto nos dedicamos ao que realmente interessa.

Por isso rapidamente associamos. Isso parece com aquilo. Lembra aquele outro. Veio antes? Foi um precursor. À frente do seu tempo.

Só que tudo isso é um engano. Tão logo conhecemos algo melhor, se é realmente bom, e descobrimos que não se parece com nada. Não é influenciado por nada nem foi precursor de nada. Não estava à frente do seu tempo. Uma obra de arte simplesmente é. É única. Tem seus próprios códigos, sua própria genealogia. Um grande artista é um universo. Que não podemos ter a presunção de entender quando ainda mal conhecemos.

Sim, há influências, movimentos, mestres e aprendizes. Mas tentemos, se possível, não cair nessa ladainha de foi influenciado por esse, influenciou aquele outro, estava à frente do seu tempo. Não no início. Talvez nem depois. Esse tipo de simplificação só nos desvia do fato de que os seres humanos são únicos, e os artistas de talento trazem ao mundo algo que ninguém trouxe antes nem trará depois. Nem que seja por um breve momento. Nem que seja justamente aquilo que ninguém notou.