Crônicas temperadas, Diálogos possíveis, gastronomia, Microcontos

Esse peixe é frango

– Moça, que peixe é este?

– É frango.

– Que diferente. Vou experimentar.

(…)

– Tem gosto de frango mesmo. Interessante.

– Moço,

– Pois não?

– O senhor não é vegetariano, não, né?

– Não. Eu como de tudo.

– Ah, então tá bom. É que esse frango que o senhor pegou não é peixe, não.

contos, Crônicas do cotidiano familiar, Diálogos possíveis, Dilemas modernos, Personagens, Uncategorized

Match

Cuca_fundida_capa_LPM

Edu era um cara legal. Pelo menos é o que todos do seu meio achavam. Simpático, ótimas ideias, cheio de referências culturais, nem um pouco pedante e superbrincalhão. Um encanto, enfim.
As garotas costumavam adorá-lo. Tinha mais amigas do que namoradas, mas estava sempre namorando. E dividia seu tempo entre alguma namorada de anos e as amigas, de quem não podia prescindir. Amigos também, mas cativava muito mais as mulheres. Um tipo específico de mulher: jovens modernas, cultas e politicamente engajadas, especialmente na defesa das questões de gênero. Porque era exatamente esse o perfil do Edu. Dava “match”. Suas posições feministas e anti-homófobas bem claras tornavam-no um mimo, um exemplo, uma exceção que confirmava a regra de homens machistas cuzões. Além do bom gosto, que era o elo entre ele e uma galera um pouco mais ampla.
O Edu só não era vegetariano. Ainda não conseguira se desapegar do gosto por um bom hambúrguer de churrasco, embora a consciência do massacre sofrido diariamente por animais pesasse em sua consciência cada vez mais.
Ultimamente, contudo, seu bom-mocismo andava francamente em xeque:
– Quando é que você vai cobrir essas tatuagens, hein, Edu? – Quando a Marcinha, que adorava essas situações, o colocou contra a parede, o que era um debate intelectual – “podemos separar a obra do artista que a concebeu?” – adquiriu caráter inquisitivo.
Em minoria, uma vez que a Bruna também participava da conversa, Edu tinha posição bem resolvida nessa polêmica:
– A arte é eterna; o artista, perene. A obra deve ser julgada por críticos, fãs, estudiosos ou mesmo curiosos. O autor, este sim pode e deve ser escrutinado pela Justiça, como qualquer cidadão. Aliás, quem é alvo de julgamento e punição se comete um crime é o indivíduo, o cidadão, não propriamente o artista. E a arte jamais poderia ser envolvida nisso. Se não, deveríamos jogar na lata de lixo da história uma parte significativa do nosso legado não só artístico, como científico. Banir obras é pensamento tribal, medieval. Imaginem! Abrir mão da obra de Hegel, Voltaire, Caravaggio, Petrarca, Hitchcock, Elia Kazan, Miles Davis, Polanski, Simonal…
– Corta essa, Edu. Esses caras que você citou estão todos mortos. Jogar a obra fora não mudaria nada, mas deixar de dar dinheiro para caras abusivos que estão na ativa é uma mensagem para que outros não façam o mesmo. – A Bruna sempre vinha com um argumento difícil de o Edu rebater, fora que ela era gata demais.
– OK parar de dar dinheiro, mas vocês concordam que a obra não deve ser jogada fora?
– Essa discussão vai longe… – A Marcinha não tinha saco para longas conversas, justo ela, que adorava provocá-las. – Mas, cara, você tem o Kevin Spacey tatuado no ombro direito!
– E o Woody Allen no esquerdo. – A Bruna nunca gostou daquela tatoo.
– Não é o Kevin Spacey, Marcinha, é o Keyser Söze. Um personagem, assim como o Woody Allen. A figura dele é a do personagem que ele costuma representar nos filmes.
– Um personagem nojento, que gosta de menininhas. Eu vi Manhattan, só porque você insistiu.
– Menininha, Bruna? A moça é adulta. Mais velha que você.
– A- hã.
– E o Keyser Söze? Adoro Os Suspeitos, mas o cara é um vilão! – A Marcinha havia recuperado o fôlego só pra manter a provocação atualizada.
– Gente, mas que puritanismo é esse? O Keyser Söze é um vilão charmoso, uma obra de arte engenhosa. Quantas pessoas não tatuam o cara de Breaking Bad ou o Venom? Vilões e anti-heróis também têm seu charme.
– Mas não na sua pele. Você tatuaria o Heisenberg ou o Dexter?
– Por que não?
– Não combina com você. – A Marcinha sabia encerrar uma conversa, tanto que falou com o indicador levantado para pedir uma cerveja ou…
– Uma caipirinha, por favor?
– Três! – Edu fez menção, e a Bruna completou. – Adorava essas moças de atitude.
– Agora vocês fizeram um pedido pertinente. De qualquer modo vou pensar no que vocês disseram. Mas depois que as fogueiras se apagarem. Ou talvez eu tatue o Heisenberg e o Dexter, pra ficar coerente.
Tratava-se disso, basicamente. Coerência era uma obsessão do Edu, e suas amigas colocaram o dedo na ferida. Explicar o significado das tatuagens deixou de ser divertido quando ele passou a ser frequentemente mal interpretado. Ou as conversas se estendiam tanto, como agora, que as tatuagens deixavam de ser o ponto. E fora, claro, as pessoas – garotas, naturalmente – que não perguntavam nem pediam explicações. Apenas o viam como um misógino declarado com ídolos nojentos estampados na pele. Por mais que discordasse, Edu importava-se demais com o que pensavam dele. E a ideia abstrata da coerência o perseguia.
Criativo, bolou uma solução. Não cobriu nenhuma das tatuagens, mas as complementou para que tivessem mais sentido. O Kevin Spacey foi fácil: uma plaquinha estilosa com o nome Keyser Söze logo abaixo do rosto transformou o ator em personagem. Com um jeito irônico de busto, homenageado, ou talvez a cabeça de um assassino caçado. Nada que ele não precisasse explicar, mas ficou coerente. E em um estilo old school belíssimo. Reavivou a tatoo. No Woody, o tatuador precisou trabalhar mais. Manteve o rostinho, mas abaixo, colado, praticamente um berço, desenhou um grande coração – esse sim totalmente old school – com uma faixa: “Amor só de mãe”.
Quem quisesse encontrar uma afronta machista não teria dúvida, mas a quem o conhecesse ou tivesse repertório para tentar entender, ele explicaria a grande piada daquele coração envolvendo a cabeça do Woody Allen. A obsessão dos judeus pela mãe é um dos temas recorrentes na obra dele – “você já assistiu ‘Contos de Nova York?’, tem que assistir!” – e coisa e tal. Assim, ele recolocava suas tatuagens no campo da arte, dos personagens, e a si mesmo nos trilhos da coerência.
A Bruna adorou. Já a Marcinha…
– Gostei desse Kevin Söze. Agora deixa eu ver o Woody Allen. Ah, ficou bonito. Mas no caso dele não deveria ser “Amor só de pai”?

 

Imagem: reprodução parcial da capa de Cuca Fundida, de Woody Allen, pela LP&M.